O negacionismo da mudança climática não sumiu de vez – ainda há acadêmicos e jornalistas que, ao despontar para a irrelevância, faturam uns trocados aqui e ali regurgitando o que certos públicos, com a cabeça enterrada na areia, querem ouvir – mas virou coisa de nicho, motivo de chacota
Por Carlos Orsi*
Não sei se algum leitor da coluna anda acompanhando, mas na mais recente temporada da série “The Morning Show”, no canal Apple+, há um momento em que um personagem põe algumas lagostas vivas para ferver numa panela de pressão. Essa é, em linhas gerais, a situação de boa parte do Brasil nas últimas semanas, e de outros pontos pelo mundo, principalmente (mas não só) no Hemisfério Sul.
O “Heat Tracker” (“Rastreador de Calor”) do jornal The New York Times registrava, na manhã da última sexta-feira, temperaturas acima de 35º C na América do Sul, Austrália, Índia, África, Oriente Médio – Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e partes da Bolívia estavam mais quentes do que o deserto do Saara (e do que o Kalahari também, para quem prefere controlar por latitude). E, cá entre nós, o fato de The New York Times ter um serviço permanente de rastreio de ondas de calor provavelmente significa alguma coisa.
Meio perdido no redemoinho do noticiário nacional sobre falta de energia, tempestades extremas e calor (muito calor!), saiu durante a semana um novo relatório da revista médica Lancet sobre os impactos da mudança climática na saúde humana a longo prazo. E, para surpresa de ninguém, as notícias não são das melhores. Há, por exemplo, a previsão de um aumento do número de mortes causadas por calor em quase cinco vezes, até 2050.
Ambientalismo de fachada
A previsão até que recebeu alguma atenção da imprensa, mas outra parte da análise dos autores do trabalho – de que as lideranças políticas e econômicas do mundo estão “se movendo na direção errada”, ao adiar ou desconversar quando assunto é pôr em prática o desinvestimento necessário em combustíveis fósseis – ficou meio escondido na cobertura (até onde vi, Folha e Estado se limitaram a traduzir o material a respeito do já citado New York Times. Quem estiver curioso e quiser comparar as traduções, é só clicar nos links).
Citando diretamente o resumo executivo do trabalho, que desnuda o ambientalismo de fachada dos grandes agentes econômicos, incluindo a profunda má-fé de empresas e governos que se dizem comprometidos com um “futuro renovável”:
“As emissões de CO2 relacionadas à energia aumentaram 0,9%, atingindo um recorde de 36,8 Giga-toneladas em 2022. Apenas 9,5% da eletricidade global provêm de energias renováveis modernas (principalmente solar e eólica), apesar de seus custos terem caído abaixo dos combustíveis fósseis. De forma preocupante, estimuladas em parte por lucros recordes, as empresas de petróleo e gás estão reduzindo ainda mais sua conformidade com o Acordo de Paris: as estratégias das 20 maiores empresas de petróleo e gás do mundo, tal como divulgadas no início de 2023, resultarão em emissões superando os níveis consistentes com as metas do Acordo de Paris em 173% até 2040, um aumento de 61% desde 2022. Em vez de buscar um desenvolvimento acelerado de energias renováveis, as empresas de combustíveis fósseis destinaram apenas 4% de seus investimentos de capital para energias renováveis em 2022.
“Enquanto isso, o investimento global em combustíveis fósseis aumentou 10% em 2022, ultrapassando US$ 1 trilhão. A expansão das atividades de extração de petróleo e gás foi apoiada tanto por fluxos financeiros privados quanto públicos. No período de 2017 a 2021, os 40 bancos que mais emprestam ao setor de combustíveis fósseis investiram coletivamente US$ 489 bilhões anualmente em combustíveis fósseis (média anual), com 52% aumentando seus empréstimos de 2010 a 2016. Simultaneamente, em 2020, 78% dos países avaliados, responsáveis por 93% de todas as emissões globais de CO2, ainda forneceram subsídios líquidos diretos aos combustíveis fósseis totalizando US$ 305 bilhões, dificultando ainda mais a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. Sem uma resposta rápida para corrigir o rumo, o uso persistente e a expansão dos combustíveis fósseis garantirão um futuro cada vez mais desigual, ameaçando a vida de bilhões de pessoas”.
Se ninguém pensou em “exploração de petróleo na Amazônia” e “controle populista do preço dos combustíveis” ao ler os parágrafos acima, alguém deveria. Aliás, a ausência desse pano de fundo político-econômico na cobertura dos temas de aquecimento global – e do pano de fundo do aquecimento global na cobertura dos temas políticos e econômicos – é um desserviço brutal prestado pela imprensa ao público.
Negacionismo light
O negacionismo da mudança climática não sumiu de vez – ainda há acadêmicos e jornalistas que, ao despontar para a irrelevância, faturam uns trocados aqui e ali regurgitando o que certos públicos, com a cabeça enterrada na areia, querem ouvir – mas virou coisa de nicho, motivo de chacota. Como consequência disso, o principal beneficiário da negação, a indústria do petróleo, adotou um par de estratégias alternativas, que o climatologista Michael E. Mann batizou de “doomism” e “deflection”. Em português, poderia ser “apocalipsismo” e “distração”. Esses são os discursos do novo negacionismo, o negacionismo “light”.
O “apocalipsismo” consiste em dizer que o mal já está feito, a crise está instalada e é irreversível, não adianta mais lutar contra – na verdade o custo de lutar contra seria exorbitante e, no fim, não passaria de desperdício irresponsável – então, só resta abraçar o capeta e tratar de mitigação e controle de danos. Em vez de menos chaminés, mais ar-condicionado. Em vez de salvar nações-ilhas e zonas costeiras, construir campos de refugiados.
Essa conversa tende a ser vendida como uma posição “sóbria” ou “realista”, a voz do bom-senso, e se infiltra, por exemplo, na cobertura da onda de calor que assola o país. Em vez de discutir como evitar a próxima (ou, ao menos, como evitar que a próxima seja ainda pior), debate-se (apenas) como estar preparado para sobreviver a ela.
Já a “distração” busca criar uma obsessão por comportamentos individuais que podem ajudar a conter o ritmo da mudança climática – menos viagens de avião, menos consumo de carne, busca por eletrodomésticos mais eficientes – numa tentativa de apagar a responsabilidade (e o poder) dos agentes institucionais, sejam governos ou grandes corporações. Como Mann escreve em seu livro “The New Climate War” (“A Nova Guerra do Clima”), “escolhas de consumidores não constroem ferrovias de alta velocidade, financiam a pesquisa e o desenvolvimento em energias renováveis, nem impõem um preço às emissões de carbono. Qualquer solução real deve envolver tanto ação individual como mudança sistêmica”.
A grande imprensa, com seu foco mercadológico em produzir e veicular material de “serviço” – isto é, que busca sugerir ao leitor individual ações e atitudes que estejam ao seu alcance – presta-se ao papel de inocente útil nessa manobra, como já se havia prestado, via “outroladismo”, nos tempos áureos do negacionismo “hard” (detalhes sobre o vexame jornalístico na legitimação da falsa “polêmica” climática podem ser encontrados no livro “Contra a Realidade”, de Pasternak & Orsi).
Fish & Chips
Um ponto em que tanto o desenvolvimentismo da esquerda quanto o ultraliberalismo (econômico, apenas) da direita parecem concordar é que o realmente importante é faturar (“crescer”) o máximo no curto prazo, custe o que custar, porque quando os problemas do longo prazo chegarem, seremos ricos o suficiente para comprar soluções. Dada a convicção profunda na realidade dessa fantasia desvairada (e desmentida pelos fatos), compromissos com a descarbonização da economia existem apenas da boca para fora, não são internalizados ou tratados como objetivos sérios.
Essa percepção de falta de seriedade acaba perpassando a cobertura jornalística de temas que deveriam ser vistos como correlatos. Quando autoridades enchem o peito para falar em perfurar mais poços de petróleo, subsidiar o preço dos combustíveis fósseis ou a compra de automóveis, alguém na coletiva poderia, só para variar, levantar a mão e perguntar, pelo amor de Kahless, em que planeta esses imbecis acham que vivem.
Comecei falando de lagostas da Nova Inglaterra, típicas dos Estados Unidos, e agora salto para a Inglaterra propriamente dita, a Velha Albion, e seu prato mais conhecido, fish and chips – peixe empanado com batatas fritas, servido (tradicionalmente) enrolado numa folha de jornal. Se o jornalismo de política e economia (e também o de meio ambiente) não recalibrar seus contextos frente à emergência climática, é assim que os leitores vão terminar – empanados, fritos e enrolados.
*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto)
Artigo originalmente publicado na Revista Questão de Ciência
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