Tyson e Dawkins expressam perplexidade sobre o porquê de ter demorado tanto para aparecer “um Darwin” na História, já que o cerne da ideia de seleção natural não é, de fato, muito difícil de apreender
Por João Lucas da Silva*
O astrofísico Neil deGrasse Tyson recebeu em seu podcast, StarTalk, no mês de junho de 2024, o biólogo Richard Dawkins. É claro que o fio da meada da conversa foi a biologia evolutiva, ou pelo menos a parte que Dawkins frequentemente discute — adaptação e seleção natural. Logo nos primeiros minutos, Tyson relembra que o falecido filósofo Daniel Dennett considerava a seleção natural uma das maiores ideias de todos os tempos. Por sinal, Dennett batizou um de seus mais bem-sucedidos livros com o nome de “A Perigosa Ideia de Darwin” e nele discute as implicações do darwinismo.
Tyson e Dawkins expressam perplexidade sobre o porquê de ter demorado tanto para aparecer “um Darwin” na História, já que o cerne da ideia de seleção natural não é, de fato, muito difícil de apreender. Os organismos variam em suas características, o ambiente não pode suportar um número ilimitado deles, então haverá uma “luta pela existência”. Nessa luta, os organismos mais aptos, ou seja, aqueles que melhor se adaptam e se sobressaem, tendem a deixar mais descendentes do que os menos aptos. Evolução por seleção natural é realmente uma derivação lógica relativamente simples. Então, por que demorou tanto?
Dawkins prometeu duas explicações. Primeiro, ele fala sobre a explicação dada pelo biólogo Ernst Mayr, um dos arquitetos da Síntese Moderna. Segundo essa vertente, a razão da demora deve-se ao “essencialismo” platônico que influenciava as ideias dos biólogos da época. Se as espécies têm essências, como poderia uma essência se transmutar em outra? Bem, essa perspectiva mayriana tem recebido críticas fortes (ver referências abaixo) e, seja como for, o próprio Dawkins prefere outra visão.
Bem, não sei qual é essa visão, pois Tyson interrompeu Dawkins. Quando eles voltam à questão, Dawkins repete que é notável não ter aparecido “um Darwin” antes, e adiciona a informação de que Patrick Matthew, um escocês, poderia ter chegado à ideia, mas não chegou. Quando Dawkins diz que Matthew não chegou lá, ele não se refere necessariamente à ideia de seleção natural em si, pois o próprio Darwin, na terceira edição de “A Origem das Espécies”, reconhece que Matthew também foi um descobridor do processo.
No “Esboço Histórico” que Darwin adicionou à terceira edição, ele cita diversos estudiosos que, antes dele, fizeram alusão ou delinearam, com menor ou maior sucesso, a ideia de seleção natural. Sobre Matthew, escreveu:
“Em 1831, o Sr. Patrick Matthew publicou seu trabalho sobre ‘Madeira Naval e Arboricultura’, no qual ele dá precisamente a mesma visão sobre a origem das espécies que aquela (atualmente aludida) proposta pelo Sr. Wallace e eu no ‘Jornal Lineano’ e conforme ampliada no presente volume”.
O que Matthew não conseguiu foi ver a seleção natural como uma força criativa — ou seja, não apenas um agente natural que elimina os menos aptos, mas que é capaz de agir cumulativamente ao longo do tempo, somando um passo ao outro para construir algo novo (deixo sugestões de leitura sobre a criatividade da seleção natural no “para saber mais”).
A incapacidade de ver a seleção como força criativa é a verdadeira razão pela qual tivemos que esperar até meados do século 19 para que alguém formalizasse essa proposta. Perceba que esta relutância em aceitar o poder criativo da seleção natural, gradualmente, passo a passo, também esteve presente entre os contemporâneos de Darwin. Ao mesmo tempo em que aceitaram a ideia de descendência com modificação, muitos deles não aceitaram o mecanismo de mudança proposto por Darwin.
Stephen Jay Gould, paleontólogo e historiador da Ciência, argumentou que o motivo por trás da relutância está no fato de que as pessoas não estavam dispostas a abandonar a visão de mundo herdada da Teologia Natural, tão brilhantemente defendida por William Paley no início do século 19 em seu livro “Teologia Natural: ou, Evidências da Existência e Atributos da Divindade, Coletadas a partir das Aparências da Natureza“.
O argumento central de Paley em seu livro consiste em uma afirmação — os organismos parecem muito bem engendrados para executar suas tarefas vitais — e uma inferência — o design visto na natureza implica na existência de um designer benevolente. Darwin poderia ter tomado o caminho mais fácil e atacado a asserção de Paley, pois é possível argumentar (e isso tem sido feito) que os organismos só são bons o suficiente, mas não representam algo próximo à perfeição do melhor dos mundos. Contudo, com bravura, Darwin tomou o caminho mais difícil.
Darwin inverteu o esquema de Paley, embora ao mesmo tempo reconhecesse a presença de design na natureza. Para Darwin, há design (as adaptações, por exemplo), mas o designer é a seleção natural, não um Deus benevolente. Para usar uma terminologia que Richard Dawkins usaria, a seleção natural é o relojoeiro cego:
“Ela não planeja para o futuro. Não tem visão, previsão, nem visão alguma. Se é possível dizer que desempenha o papel de relojoeiro na natureza, ela é o relojoeiro cego”.
E o que é a seleção natural, senão uma série de hecatombes? Para que as populações evoluam, é preciso que linhagens e milhares de organismos morram e continuem morrendo, pois os menos aptos não vivem tanto, nem deixam tantos descendentes, quanto os mais aptos. A seleção natural elimina os menos aptos e, assim, permite que os mais aptos triunfem. Da concatenação das hecatombes nasce, então, o sucesso, a complexidade e a adaptação. Paley jamais poderia concordar com isso, uma vez que da Natureza ele inferia a benevolência de seu Criador.
É irônico que Darwin tenha subvertido o mundo de Paley. Ele escreveu: “Eu acho que nunca admirei tanto um livro [Teologia Natural]… Antigamente [quando mais jovem] quase podia citá-lo de cor”. Penso que aí reside uma lição importante: devemos respeitar e admirar o trabalho de nossos predecessores, mas também devemos, como cientistas, contestar, tentar melhorar, até mesmo abandonar ou subverter completamente as ideias que herdamos.
E assim o conhecimento progride, de forma não linear. Ou, nas palavras de Gould:
“O progresso do conhecimento não é uma torre de tijolos construída de baixo para cima, mas um produto de impasses e avanços, resultando em uma estrutura bizarra e sinuosa que, no entanto, acaba se erguendo.”
*João Lucas da Silva é Mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência.
PARA SABER MAIS
Neil deGrasse Tyson and Richard Dawkins Discuss Science, Religion and Evolution. https://youtu.be/KPh0LOCWT5A?si=yoq9CoA2-wRN63Jb
Gould, S. J. (1990). Darwin and Paley meet the invisible hand. Natural History, 99(11), 8-12.
Winsor, M. P. (2006). The creation of the essentialism story: an exercise in metahistory. History and Philosophy of the Life Sciences, 149-174.
Dawkins, R. (2001). O relojoeiro cego. São Paulo: Companhia das Letras.
Beatty, J. (2016). The creativity of natural selection? Part I: Darwin, Darwinism, and the mutationists. Journal of the History of Biology, 49, 659-684.Beatty, J. (2019). The creativity of natural selection? Part II: the synthesis and since. Journal of the History of Biology, 52(4), 705-731.
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